Vi o Aurélio apenas uma vez através de um vidro sujo. Já estava de partida e só lhe disse adeus, ao trancar a porta, sem o conhecer.
Ouvi-o pela primeira vez de manhã, ao regressar da missa. A janela do nosso quarto dava para a rua que ele subia, muito lentamente, de canadianas. Era o som metálico das suas pernas-extra que eu ouvia, muito espaçadas entre si – o tempo todo que um passo leva a dar.
Mastigava uns sons – umas palavras para dentro – e eu só percebia que falava para si. Talvez o murmúrio ecoasse por toda a aldeia, mas ninguém compreenderia os seus pensamentos. Parariam só por breves momentos o que estivessem a fazer, levantariam as cabeças mais alto, os ouvidos aguçados, esperariam um momento como quem antevê o que se passa e por fim confirmariam com a cabeça e diriam: “É o Aurélio que está a chegar a casa.”
Voltei a adormecer na manhã preguiçosa e não ouvi a porta do Aurélio abrir.
Quando saímos para o rio, a porta verde dele, mesmo em frente à nossa, estava já aberta, mostrando um corredor de madeira velha. Cá fora, duas canadianas pousadas, mas do Aurélio nem sinal. Descemos para o rio, com um leve sabor de férias nos lábios e na dormência das pontas dos dedos.
Quando o sol das duas e as pedras quentes nos pés nos queimaram, subimos as ruas íngremes até à rua que nos albergava.
A porta verde continuava aberta, as canadianas à entrada e, pela primeira vez, um vislumbre do Aurélio. Uma mão saiu de uma janela e sacudiu um tupperware com restos de comida. O Nuno ainda soltou um “Olá Aurélio” tímido, mas não tivemos resposta. Ouvimos, em vez disso, quando nos aproximámos, o som de um rádio ligado.
Não me recordo da primeira canção, mas sei que depois passou Françoise Hardy, “Le Temps de l’Amour”. Foi aí que conheci o assobio do Aurélio. O assobio mais afinado que alguma vez ouvi. Imaginei as tardes todas em que ele assobiou estas canções.
Arrumámos a roupa de uma noite e saímos algures entre as três e as quatro da tarde quente. Através de um vidro sujo de uma janela, vi o rosto do Aurélio pela primeira vez. O rosto do assobio. Só lhe disse adeus, ao trancar a porta, sem o conhecer.
Prometi-me regressar para gravar o assobio dele que durou toda a nossa hora de almoço e que tanto acentuou o silêncio onde estávamos.

2014.
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