Contentores do lixo em linha. Metalizados. Couves, muitas couves no chão. Uma cauda de peixe maior que o meu braço. O lado amputado virado para nós. Grosso como a minha perna. É fim de tarde e algumas bancas começam a ser arrumadas muito lentamente. Algumas lâmpadas amarelas acendem-se, penduradas nos toldos de todos os dias. Quantas lâmpadas se acenderam já? Lusco-fusco, hora mágica e o amarelo novo. Quero perder-me aqui. Os meus pés escorregam na humidade do peixe morto e da fruta de ontem.
Chego mesmo ao centro. Para um lado, para o outro. Desço. Vozes. Gente. Muita gente. Cores. Muitas cores. Cheiros. Tantos cheiros. Motas passam no meio de todas as vozes e de todas as gentes e de todas as cores e de todos os cheiros. Passam-me rés-vés. Ou passo-lhes eu rés-vés. Ninguém tem prioridade. Vale só a regra dos olhos-nos-olhos e o que se entende daí. Habituamo-nos rapidamente a caminhar assim. A sentir a mota atrás de nós sem a ver sem a ouvir sabemos que nos encostamos ligeiramente a um lado e ela encosta-se ao outro e se alguém vem do lado oposto ela vira quase para cima de nós mas não nos toca nunca. Os corpos movem-se em sintonia, no caos do Ballarò.
Uma panela para a massa e uma faca para a fruta. Azeitonas doces e farinhentas. Pimenta forte num saquinho. Laranjas para as manhãs difíceis. Compra-se tudo com moedas pequenas. Continuamos porque não podemos parar. As vozes as gentes as cores os cheiros inebriam-nos. Cruzam vozes cruzam motas cruza gente vai ali ao meu cugino que ele tem o que procuras. E o amigo que fazia conversa na barraca leva-nos lá. Há tudo. Vale tudo.
No final da descida, fumo e mais cheiros ainda. Cozinha-se o que se vende acima. Todos os sons todos os odores mais intensos. Eu sorrio e sei que isto é a rotina desta gente. Penso em todo o exotismo que existe só na minha cabeça burguesa. Mas uma coisa é certa: Ballarò é para sempre – o sempre que durará isto. Estes pés não entram mais em lojas com porta, aqui.
Volto atrás, volto ao centro. Às couves, aos contentores, ao peixe morto, a escorregar na fruta d’ontem. Subo. Mais luz amarela, mais gente, mais cor, cheiro a peixe. Há bacalhau, mas hoje levo outra coisa. São sete e tal da tarde, há pouca luz do céu. Troca-se o peixe por moedas pequenas de novo. As pessoas não acabam, as lâmpadas amarelas não acabam, as bancas não acabam, eu não acabo de certeza. Mais para cima, uma crostata siciliana a cinquenta cêntimos.
Há tudo. Vale tudo. Quero voltar brevemente para os queijos, para a fruta do dia, para o peixe fresco, para as sardinhas salgadas, para os copos que faltam no armário e a toalha que falta na banheira. Volto para o improviso e também para a lista das compras.
Regresso ao centro. Regresso sempre ao centro. É o único caminho que sei. Sigo a rua escura, passo os cabeleireiros dos africanos, passo as mercearias dos indianos, passo as bicicletas penduradas nas paredes dos italianos. Chego à Via Roma e viro à esquerda, de sacos brancos na mão. Cinco minutos e arrivo. Passo no restaurante tunisino que está aberto a noite toda e o dono já me saúda. Tenho que voltar quarta para o couscous de peixe, anoto mentalmente. Cici, o gato, continua na cadeira estofada, na entrada. Via Lampionelli. É preciso empurrar a porta com força e batê-la com mais força ainda. Primo piano.

Palermo, 2013.


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