muitos cigarros, pouca gente, olhos-nos-olhos.
Lydia Lunch | Ritz Clube | 02 Junho 2012


Se não é reportagem, deve ser crónica.

Sobre o estar sozinho. Sobre o saber estar sozinho.
As luzes são vermelhas e azuis e, por isso, a folha branca do papel parece roxa. O palco está vazio. Só os instrumentos metalizados, que reflectem as cores das luzes. Tudo é vermelho e azul, roxo no fim.
Que tipo de gente vem a estes concertos? Não sei, a minha gente não é de certeza. Mas eu não tenho gente. Então pode ser qualquer gente. Toda a gente! A gente que vinha no metro do jogo de Portugal, talvez. Eles a entrarem por aqui a dentro com os cachecóis e o suor dos pénaltis falhados. E a gritar em coro LÍDIA LÍDIA LÍDIA! Eles querem é o almoço do pic-nic do Tony. Não este "lunch".

A rapariga das pernas e das meias bonitas tira uma fotografia ao palco vazio. E eu desejo ser ela. Só pela máquina, só pelas pernas, só pelas meias. Eu só tenho caneta e um papel branco que agora é roxo. Não tenho mais nada e não sou mais nada aqui. Ao meu lado, um casal tipicamente atípico. O casal que eu quereria ser, portanto. Ele propõe pôr a cadeira, onde está sentado, no meio da plateia e ri-se. Eu sorrio. Desejo ser todos os que aqui estão. Experimentar um bocado de cada um. O casal típico-atípico. Os três do bar da esquina que se riem, mesmo sendo um pouquinho miseráveis. Não quero ser como eles, mas são quem sou. Só que eu não me rio. O rapaz que vejo de costas, sentado sozinho e com óculos. [O rapaz do casal ao meu lado faz a piada do almoço/lunch e ri-se.] Os três pós-modernos do lado oposto da plateia. As calças justas-blitz e os telemóveis novos. O rapaz com ar de modelo que vai ao armazém e traz bebidas. É o único que atravessa a pista. Ele e aqueles que vão ao bar encher o copo. Eles e aqueles que vão ao wc esvaziar o copo. Os homens sozinhos encostados ao bar. A rapariga do bar, de cabelo vermelho e franja. Uma cara que gostaria de ter. Um outro casal, mais novo do que eu e novo no ser casal, que nunca descolam um membro um do outro. Até um dia, já sabemos. Sejam felizes sejam felizes, jovens férteis virgens nisto de ser sempre dois. Logo virá o desejo de ser só um. Um só. Isto se forem pessoas interessantes. Se não forem, nunca quererão ser um-solitário. Pelo contrário, desejarão sempre um outro, quem quer que seja, desde que não largue nunca um membro seu. E quando largar, outro virá. Não dá não dá tempo vida para estar viver ser só. Porque não há nada nada nada nisso para eles. Mas para mim há. Há tudo. Para quê julgá-los? De certeza que são boas pessoas. O rapaz das bebidas está lá em cima, junto à mesa de som. No meio da pista, uma pessoa. A única que não veste preto, hoje. Camisa vermelha ao xadrez, calças de ganga roçadas e sapatilhas Nike, o fotógrafo.

Isto não interessa nada nada. Só faço, escrevo isto porque não aguento o estar sozinha. O ter vindo sozinha. Enquanto faço isto, o tempo passa. E os olhos, os olhos estão fixos no papel e não têm que confrontar os outros, os olhos dos outros. Levantam-se só para analisá-los um pouco, mas logo voltam à folha branca-roxa. Isto é falso é falso e não interessa nada nada. O whisky cai-me mal e continuo a bebê-lo. Nunca me cai bem e bebo-o. A cerveja também não me cai bem. Mais valia beber cerveja. Ao menos, é mais barata. Se cai mal e cai, que caia bem ao bolso. À minha frente, a mulher cuja história queria ter. Suspiro, eu, e ela, Suspiria.
Tiram fotografias e eu não quero saber não quero saber e escrevo escrevo nada só escrevo porque não aguento estar só e quero que o tempo passe e que o concerto comece e que eu me esconda no escuro e que possa esbater um pouco este incómodo do estar só. As luzes apagam-se e penso que vou finalmente parar de escrever sobre nada, mas acendem-se logo depois e eu volto à tinta e aos olhos baixos. Ao meu lado, um pé abana abana não pára. As pessoas não param de falar não param não se calam. E se todos se calassem assim poc do nada? Que alívio. Não seria eu só em silêncio.
A mulher do copo de vinho tinto e do telemóvel colado constantemente à orelha, com vestido da moda e maquilhagem de senhora, está lá em cima. Manda neles todos. No rapaz das bebidas, na rapariga da franja do bar, no rapaz loiro da tatuagem, em mim se quisesse. Ah, à minha esquerda sentadas, um casal de duas raparigas. Uma, a de cabelo curto, troca olhares comigo. Sinto-me a beber álcool etílico. Não sou glamorosa a escolher whisky, não sei os nomes as marcas os gostos. Mas este, este nunca mais. Aprendo por exclusão, vá. Já foram as onze e trinta. As luzes apagam-se de vez. Começa.

Lydia Lunch diz boa noite. No mesmo tom de voz, informa-nos que é o seu aniversário e começa a música, assim, do nada. Estranhamente natural. Num segundo, estou sentada num bar incomodante sozinha e, no outro, tenho a diva da no wave nova-iorquina a 5 metros de mim, a cantar para mim. E canta, canta para mim e para cada um na plateia individualmente. Os olhos azul-transparente param e fixam-se nos olhos escuros de alguém da plateia que ela escolhe. Canta coisas como "element building dreamless state desperate kiss ruptured soul grow cold every" e pára horas – é o que parece – nos olhos do rapaz do casal novo. Só o vejo de costas. Não lhe vejo os olhos. Já os dela, não piscam, impenetráveis. Atrás dela, a italiana Beatrice Antolini. Uma Lydia Lunch novinha bate com garra ritmada nos tambores da bateria. A música é daquela de se sentir mais no corpo que nos ouvidos. É daquela que entra pelos pés e depois sobe à cabeça, e não o contrário. O que nos entra pela cabeça são os olhos hipnotizantes de Lydia e os trejeitos do corpo de Beatrice. A forma como uma faz as palavras saírem-lhe dos olhos e como a outra faz o ritmo sair-lhe do corpo.
As Sister Assassin, se lhes quisermos dar um nome. Um trio, normalmente. Hoje duo. Falta a saxofonista californiana Jessie Evans. Um dos mil projectos de Lydia Lunch. Um dos mil concretizados, todos. DIY or DIE. Aprende, aprende, que a Lydia não dura para sempre. Ou talvez dure. Eu é que não.

Muitos cigarros e pouca gente. Nasci 30 anos atrasada, mas se me fixar nos olhos claros de Lydia, olhos-nos-olhos, quase que consigo imaginar-me num bar nova-iorquino, no final dos anos 70, pouco mais nova do que sou agora. As pessoas estão ali para ver Lydia Lunch, seja qual for o espectáculo que ela represente. As pessoas estão ali e é um privilégio estar ali. Ainda é uma experiência única ver e ouvir Lydia Lunch. Quando as luzes se apagam, somos todos anónimos. Não interessam os outros. Não interessam os engates da noite. Não interessa a maquilhagem, a saia mais curta e as pernas mais altas. Não interessa a camisa mais cara, as sapatilhas de marca, as paranóias e a pessoa do lado. Não interessam. Estamos ali só, tristes e sérios. Ou a rirmo-nos quando Lydia canta que o diabo deveria ser mulher. Estamos ali só, a dançar com as batidas de Beatrice ou quietos na introspecção das palavras de Lydia. Estamos ali só, desligados, ou estamos ali só, conectados a tudo. Estamos em êxtase ou em depressão. Estamos porque sim e porque não. Estamos porque somos velhos e estamos porque somos novos. Estamos porque queríamos ser novos e estamos porque queríamos ser velhos. Estamos porque queremos reviver memórias e estamos porque queremos criar memórias. Estamos ali só, com muitos cigarros e pouca gente, olhos-nos-olhos.
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