[escrito no metropolitano de uma cidade europeia]

«As portas abriram-se e foi esmagado pela hora de ponta. Uma mulher de blusa tigresa e um homem muito direito de fato tornaram-se o seu único ângulo de visão. A mulher ficou com a fronte na sua direcção. Baloiçava o seu corpo – como um macaco pendurado num galho – com a trepidação da carruagem. Para a frente e para trás para a frente e para trás. Encostava o corpo todo ao dele. O seu corpo pesado para a frente e para trás para a frente e para trás. O desconforto daquele corpo a vir e a ir a vir e a ir. Ele encolhia-se no seu canto o mais que podia, quando sentia que se aproximavam de uma nova estação e a travagem ia a fundo. Cabum o corpo todo dela sobre o seu. O cheiro a pastilha elástica cor-de-rosa mastigada. O ruído da pastilha elástica cor-de-rosa a ser mastigada. O vislumbre da pastilha elástica cor-de-rosa ensopada em saliva. Ela olhava-o enquanto se baloiçava e deixava cair o corpo pesado sobre o dele e mastigava a pastilha elástica cor-de-rosa. Lá vinha ela, de boca aberta, com o bafo de tabaco bafiento e morangos fétidos e o cheiro a suor do braço com o qual se apoiava. Tinha um sinal no queixo e um pêlo a sair dele. E iam e vinham e iam e vinham – o sinal e o pêlo. E o bafo e o olhar pequenino e superficial. Aquela mulher arremessava clichés de todos os poros.

O homem muito direito olhava-a de cima a baixo de cima a baixo. Tinha um anel no dedo – via-se na mão levantada que se segurava na argola pendurada no tecto. O anel trilhava-lhe a pele do dedo agarrado com força à argola. Tinha a mão vermelha e o dedo anelar ainda mais. Devia fazer a sua mulher muito infeliz e olhava esta mulher no metropolitano de cima a baixo de cima a baixo com uma superioridade que só existia na sua cabeça. Os olhinhos miseráveis para cima e para baixo para cima e para baixo com um hmpf calado. Tinha a boca torcida pelo desprezo e pelo anel que lhe trilhava o dedo, mas de que nem se apercebia. O anel trilhava trilhava o dedo e os olhos do homem de cima a baixo de cima a baixo, da ponta loira pintada à ponta do sapato alto bicudo. De cada vez que olhava para cima e para baixo, mais o desprezo aumentava, mais o anel apertava. E ele nem se apercebia que era o anel que movia tudo, todo aquele desprezo e toda aquela postura direita e todo o olhar de cima a baixo de cima a baixo. O anel apertava apertava. O dedo estava vermelho estava roxo estava preto. E caiu. O dedo caiu no meio dos pés da multidão da hora de ponta. O dedo soltou-se da mão, simplesmente, e caiu. O homem nem se apercebeu e saiu na paragem seguinte. Ninguém se apercebeu. Ninguém se apercebeu que um dedo anelar de um homem pateticamente casado tinha caído no chão de uma carruagem do metropolitano. Caiu lá de cima da argola para as pessoas se segurarem. Deve ter sido pontapeado entre entradas e saídas e rolado para baixo de um banco, porque nunca mais o viu. Nem sequer sangrou. Caiu só, podre. Do seu canto entalado, viu tudo. Viu o dedo a ficar vermelho roxo preto e a cair em câmara lenta, enquanto o homem se dirigia às portas abertas e mais um bafo a tabaco, morangos e saliva lhe enchia as fossas nasais.

Tinha que levantar a cabeça do meio dos cabelos dos outros para respirar outro ar, de vez em quando. Não mexia nem um membro, a não ser o pescoço para cima e para baixo e apenas porque os ombros lhe permitiam essa margem de manobra. Começou a transpirar, mas a tentativa de tirar o casaco despertou nos outros um olhar incómodo e acusador. Desistiu. Preferiu transpirar a viagem toda do que enfrentar a sociedade desossada do metropolitano. Faltavam três paragens e mais gente entrava, mais apertado ficava, mais ele transpirava. E mais transpirava ainda, porque ansiava e pensava como iria passar por toda aquela massa de gente até chegar à porta dali a duas paragens. Como teria que se espremer entre corpos e cheiros e olhares. Iria ficar com o fedor de toda aquela gente. Uma paragem. Começou a tremer e a transpirar ainda mais e a expelir "com licenças" gaguejantes. Tinha os olhos sempre no chão enquanto avançava e gaguejava, para não ter que enfrentar aqueles olhares suínos, nem dar rosto aos cheiros que o iriam perseguir durante todo o dia.

Tinha a certeza de que não iria conseguir sair. Ficaria imobilizado, para sempre fechado naquela carruagem, entre nacos de gordura humana. Um solavanco. Fechou os olhos como quando se espirra. As portas abriram-se. Uma brisa de alívio entrou na carruagem apinhada. O ar chegou-lhe à cara, mas parecia-lhe inatingível. Nunca mais sairia dali. Nunca mais.

A mulher tigresa começou a empurrá-lo com o corpo saliente. COM LICENÇA! COM LICENÇA! NÃO OUVE?! Mais uma vez, o corpo dela contra o seu. Mas já não era para a frente e para trás – era para a frente para a frente para a frente, empurrado por aquela pança andante. Ela levantou a camisola tigresa até ao peito e o seu umbigo transformou-se numa boca gigante que gritava com mau hálito COM LICENÇA COM LICENÇA NÃO OUVE? Uma língua desenrolou-se de lá de dentro e esticou-se para chegar à cara dele. Com os olhos a milímetros daquele músculo viscoso, ele torceu o rosto todo, torceu o corpo todo e escapou-se daquela língua mole, daquela mulher mole e daquela multidão mole.

As portas fecharam-se. Ele ficou a assistir à partida do metropolitano, enquanto respirava fundo e passava a manga do casaco pela testa. Os vidros estavam embaciados. Por entre o nevoeiro húmido que enchia as carruagens, pareceu-lhe ver dezenas de línguas  a contorcerem-se, a gesticularem no ar, e olhares vazios, todos os olhares vazios. Que destino ignorante e cruel, o daquela gente que mastiga chiclet de boca aberta, que perde dedos anelares, tem línguas a sair do umbigo e nem se apercebe. Que destino consciente e cruel o dele, o de se aperceber de tudo isso.»


(to be continued)

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