O velho de cima chora de dores todo o dia. “Mamma mia! Mamma mia!” O filho, suponho, ajuda-o a mover-se. “Piano piano”. Ai mamma mia tão angustiante. Pior que o som das ambulâncias. Os vizinhos do lado estão cá dentro de casa. Há beatas mais velhas que eu no terraço de baixo. É tudo húmido, mesmo que não chova. É tudo castanho, mesmo que seja branco. Há lixo por todo o lado. Há gente feia por todo o lado, mas não tenho medo de lhes sorrir. Não há tempo para arranjar muito. Um banho de chuveiro rápido com pouca pressão. As toalhas por lavar. A janela do quarto-de-banho partida. Ainda há vidros no chão. O chão não foi lavado. Andar na ponta dos pés. Lavar os dentes enquanto se veste a roupa interior. Não há tempo para maquilhagens e as olheiras já são irreversíveis. Faz-se o risco preto da praxe que chega ao fim do dia em borrão. O cabelo não se penteia – já se desabituou disso.
O frigorífico tem bichos mortos dentro e o cheiro da morte deles. Come-se um cornetto (croissant) e bebe-se o café, enquanto se corre pela cidade. Velha, podre, suja, castanha, caótica. Todos os clichés palermitanos. E, de repente, a luz do sol, ainda inclinada, mostra-me uma cidade grandiosa escondida nas ruínas. Não consigo deixar de olhar para cima, mesmo que aqui seja conveniente olhar sempre para baixo.
Caminhar caminhar muito. É difícil parar aqui. Transpirar transpirar muito. Suor a sério. Trabalhar trabalhar muito. Com nada. Omeletes sem ovos. Assusta-me conhecer miúdos com menos ou pouco mais de uma década que sabem mais da vida do que eu. Ainda bem que não vi baratas. Ou já teriam muitas lágrimas corrido. Tenho o cansaço de dois meses e só passaram dois dias. Os dias têm muitos dias dentro, aqui. Os olhos pesam. A cabeça pesa. Os pés pesam. O corpo pesa. A alma toda pesa.
Não tenho garra para escrever sobre esta gente. Estou demasiado distante. Vejo tudo pela lente protectora de uma câmara, tudo como num filme – un film italiano senza sottotitoli. Sinto-me culpada por achar isto literário. Usar a decadência alheia para escrever. Para proveito próprio. Chego a duvidar da minha honestidade comigo mesma. Com os outros também.
Diz-me uma palermitana que se topa logo que não sou daqui.
A joana-burguesinha há-de morrer em Palermo, espero.
(Ou talvez não. Mas qualquer coisa nova há-de nascer.)


Ao segundo dia, o velho calou-se. Há uma rua que tem uma loja de berços junto a uma funerária.

Palermo, 2013.
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